quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Coisa que brinquedo não entende

A porta se abriu de uma forma como nunca havia visto antes, em um movimento vagaroso. Daqui de dentro eu aguardava as mãos delicadas do meu dono, que tocariam em mim, como em todos os dias. A luz invadia o escuro que tomava conta da minha moradia. Logo vi o rosto do garoto que sempre me escolhia para as mais impressionantes aventuras criadas pela sua mente. Foi nesse momento que percebi que algo de errado havia acontecido; que hoje não haveria brincadeira, encenação, diversão.   

Aqueles olhos que sempre brilhavam, formando uma sintonia perfeita com o sorriso, dessa vez estavam diferentes. Eu não conseguia compreender o que significava aquela água escorrendo pelo rosto dele e aquela face desmontada. Talvez por ser um brinquedo, coisas humanas não se encaixem no meu mundo, e eu fique sempre perdido quando o roteiro é quebrado. Em vez de brincadeiras às vezes me deparo com cenas de algo que eles, humanos, chamam de sentimento. 

Depois de me encarar por alguns minutos, seus pequenos dedos me envolveram com facilidade. Não senti firmeza nos movimentos. Seus olhos se perdiam como se avistassem um labirinto. Me segurando em uma das mãos, fechou a porta do local que ele chama de armário. Agora me segurava firme, olhando para mim com o rosto encharcado. Eu queria fazer perguntas. O que acontece companheiro, que hoje não me joga para cima, me dá nomes diferentes e monta histórias de repente?  Por que está tão ofegante, aflito? Cansou-se de mim?


Parece até que ele me ouviu. Começou a soluçar e formar frases. “Pai”. “Mãe”. “Acabou”. “O que vai ser agora?”.  Essas palavras saíram sem nexo, soltas no ar, como se o que ele queria dizer não tivesse sentido nem mesmo a ele. Então, resolveu se sentar, desabando no chão coberto por um tapete, que em dias normais se transformava em mar, estrada, chão da lua. Ele me apoiou em cima das pernas, me acariciou e deu início a um monólogo interrompido com freqüência por suspiros, soluços e mais daquela água que brotava dos seus olhos.

- O que será de mim agora? Acabou tudo. Meus pais se separaram, não serão os mesmos. Eu não vou ser o mesmo. Por que isso tinha que acontecer? Me diz! Você não deve entender, nem imaginar.
Realmente não sabia do que se tratava, estava angustiado, queria resolver os problemas dele, ser o herói da brincadeira, mas só podia ouvir. E de repente o silêncio tomou conta do ambiente. Ele me segurou com firmeza, colocou-me perto do seu rosto e eu sentia o carinho daquela atitude. Ficou assim por alguns minutos, paralisado. Nesse momento quis ser humano, poder entender o que acontecia; ajudá-lo, retribuir o carinho.

“Filho”, a voz grave se fez ouvir. Conhecia aquele homem que tinha mania de chamar meu dono de filho, mesmo sabendo que o nome dele era Maycon.  O rosto do gigante estava pálido e aquela água brotava dos olhos dele também. Uma das mãos estava ocupada por um objeto com alça. O chamado fez com que eu fosse colocado no chão e meu dono se levantasse e corresse em direção ao homem de grande altura. De onde eu estava não consegui ouvir o que eles falavam. 

É, parece que foi ontem que aquele senhor esteve aqui pela última vez. Desde então nunca mais o vi por aqui. Vejo apenas aquela senhora que meu dono chama de mãe. Nunca mais vi o Maycon com os dois juntos, conversando, sorrindo. Comigo ele também mudou. Seu mundo mudou. E sempre ouço meu dono culpando uma tal separação. Coisa que brinquedo não consegue entender. 

Maycon Corazza

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