terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Adão, pai abençoado!

Em movimento pela Avenida Carlos Gomes, área central da cidade serpente. 

– Eu não tenho medo dessas coisas. Não tem nada a ver - disse o Pedro.
– É - foi o que o Maycon conseguiu dizer.
– Você tem medo? - questionou o Pedro.
- Ah cara já tive mais medo, mas depois que comecei a morar sozinho perdi um pouco. Mas quando era criança morria de medo dessas coisas, de ver alguma assombração.

Pedro dá uma risada que tem um som particular.

– Às vezes eu ia tomar banho, por exemplo, e vinham essas coisas na cabeça. Aí eu tomava banho mais rápido que não sei o que - completou o Maycon.
– Nossa que cagão que você era!

A Pajeiro do tio do Pedro já estava parada em cima da calçada. Estávamos a poucos metros do destino final. Havíamos saído da faculdade com o itinerário traçado e faltava apenas o portão ser aberto para que entrássemos na área mitológica. Naquela noite de quinta-feira íamos contra uma tradição: a visita a um cemitério deve ser durante o dia; de preferência ensolarado. Não somos rebeldes, apenas queríamos sentir na pele como é a vida de um guarda-noturno “daquele lugar”.

O relógio marcava 11h35min quando fomos chamar pelo guardião dos mortos.
– Adããão! - gritava o Maycon.
– Adããão! - eu insistia.

Gritamos mais um pouco. Tinha a sensação de que estávamos convocando o Adão de volta ao paraíso ou ao inferno. Para as pessoas que passavam pela rua deveríamos ser anormais. Tivemos que insistir mais algumas vezes. E nada. 

Pedro deu a volta no quarteirão e foi até o outro portão na esperança de que o guarda estivesse andando por aquele lado, e ouvisse nosso chamado. Da outra ponta eu podia ver o meu companheiro de aventura, porém não conseguia ouvi-lo. Impaciente, eu quebrava o silêncio.

– “ Seo” Adão! “ Seo” Adão!

A resposta? Apenas a imagem de lápides, cruzes e sombras.

Pedro voltou da sua tentativa frustrada. Resolvi ir até ao Ginásio Ciro Nardi que fica do outro lado da rua pedir ajuda para algum guarda patrimonial. Chegando lá expliquei tudo: que havia sido combinado previamente e que tínhamos autorização, mas que o Adão não apareceu, mesmo depois de gritarmos várias vezes pelo seu nome...

– Pois é. Ele sempre aparece por aqui e hoje ele não veio. Vou tentar ligar na central e pedir para que entrem em contato com ele - disse o guarda, trajado com uniforme azul, enquanto competia com ruídos de uma televisão.

Tirando o celular do cinto, ele ligou, conversou, explicou e ouviu a pessoa do outro lado da linha.

– Daqui a pouco eu retorno então - disse.

Conversei um pouco com ele sobre o nosso personagem. Tempo suficiente para que ele ligasse para saber se haviam conseguido contato. Ele tentou, mas não atendia. Tentou de novo, e nada. Decidi voltar até a entrada do cemitério para avisar o Pedro que talvez demorasse. E enquanto atravessava a rua vi um senhor de altura mediana andando em direção ao portão pelo lado interno do cemitério. Era “ seo” Adão.  Talvez por coincidência os ponteiros do meu relógio quase se uniam sobre o número 12.

– O senhor que é o “ seo” Adão?
– Oi. Sou eu sim – respondeu.
– Avisaram o senhor de que viríamos hoje aqui?
– Avisaram sim...
– Tem como abrir o portão?
– Só um pouquinho – disse o guarda, enquanto ia em direção a uma espécie de escritório/dormitório.

Quando ele abriu o portão, nos apresentamos, conversamos bem rapidamente e ele logo mostrou que tinha muita coisa pra falar. Foi nos conduzindo pela via central que corta o cemitério. Ele andava com passos duros, uma ginga de alguém que estava sempre pronto para virar o corpo repentinamente antes de ser surpreendido. Ao contrário do que era de se imaginar, ele não esperou por perguntas e logo iniciou uma fala frenética, contínua e confusa. As palavras saiam da boca daquele homem de 57 anos com muita facilidade.

– Desde quando eu trabalho aqui, há 5 anos, foi sempre bem tranqüilo. Uma paz. Exceto uma vez, quando um rapaz conseguiu pular o muro – falava enquanto o pé direito ultrapassava o esquerdo, assim sucessivamente. O rapaz queria queimar a ossada do avô dele. Eu vou levar vocês até o túmulo – interrompeu o raciocínio.

Maycon fazia seu lado simpático, mas meu nariz apurado não deixou de detectar em “seo” Adão, um hálito típico de quem estava dormindo. Isso justificaria com a sua vinda da guarita, onde futuramente descobriríamos que é um ótimo local para alguém dormir.

Pedro e eu continuávamos explorando aquele espaço que a noite tem características diferentes. Os túmulos parecem ter mais destaque e a morte ganha mais significado.  No caminho nos deparamos com o túmulo de um tio do Pedro que morreu no ano passado.

– Esse aqui é meu tio - disse apontando para a fotografia em uma moldura arredondada. Essa é minha bisavó - apontou para outra fotografia.

Nosso trajeto prosseguiu após essa observação. “Seo” Adão continuou a contar a história que ele havia escolhido para nos recepcionar. No dia em que o rapaz quase colocou fogo no caixão em que o avô estava enterrado há 10 anos, os fios da cerca elétrica, que passam sobre o portão, estavam arrebentados. A deixa fez com que o plano do jovem quase desse certo. Essas foram as informações que “seo” Adão havia nos passado até que chegamos próximo a um túmulo baixo, revestido de azulejo marrom.

– É esse o túmulo. O rapaz já tinha quebrado com uma picareta essa parte – disse, apontando para a cabeceira do jazido.  Eu fui pelo lado de baixo, quando cheguei a uns 3 metros dele disse ‘como você pulo aí?’ Aí ele falou: ‘pulei o portão’. ‘É invasão, você está detido. Mão na cabeça’ – disse, como alguém que impõe autoridade através da voz e da postura. O rapaz pegou a carteira e quando viu que eu chamei a chefia, chamei a polícia, pediu pra vazar. ‘Não eu trabalho há 23 anos e nunca deu problema, então você vai assumir esse processo.  Pulou pra dentro de qualquer plantão de guarda é invasão, é prisão, é cadeia’. Eu fui por lá pelo Muffato, ali por baixo – disse apontando para a parte do cemitério que fica em direção ao Super Muffato, uma das lojas de rede de supermercados. Ele reprovou dois anos na faculdade. Ele falou para os pais dele: ‘meu avô está fazendo maldição na minha vida. Eu tenho que queimar os ossos dele’. Ele trouxe gasolina, sal. Com dez minutos ele puxava o caixão e molhava com gasolina. Ele tinha ido numa mesa de magia negra, e lá falaram isso pra ele. Ele disse que o problema dele resolvia com isso, mas que tinha mais doze prejudicados – recordou enquanto interrompia as ideias algumas vezes com fatos que não faziam parte dessa história.

Até esse ponto o Pedro não havia perguntado nada; atitude que se repetiria por mais algum tempo. Ele parecia estar perdido na confusão que era o pensamento do nobre guardião. Foi nesse momento que percebemos que a ideia de vivenciar as sensações de passar uma noite no cemitério havia perdido força. O local que era assombroso se tornou comum. E “seo” Adão ganhou relevo.

Apesar de saber que o Maycon estava tentando manter algum tipo de diálogo com o guardião, eu já havia perdido o foco havia algum tempo. O sono estava no auge, e prestar atenção na conversa deles nesse momento só me faria ter mais sono e raiva. Passei a observar o cemitério. As lápides e o silêncio me chamavam a atenção. Apesar de ser um lugar taxado como macabro, a tranqüilidade que o cemitério traz a noite é fascinante. Obviamente, não podemos ficar na paranóia de pensar que estamos andando sobre pessoas em decomposição; mas isso não passava na minha cabeça nessa hora. Uma rede armada entre lápides seria um bom lugar pra tirar um cochilo. Percebendo que se não oxigenasse meu cérebro, iria dormir, voltei a conversar, mandando de bate pronto minha primeira pergunta da noite, após passar 29 minutos calado.

Fiquei surpreso ao ouvir aquela dicção que só o Pedro tem. Acho que tinha até me esquecido que ele estava compartilhando do mesmo espaço que eu, e talvez das mesmas dúvidas. Ele tinha encarado “seo” Adão e interrompido um assunto, que confesso não me lembrar.

– O senhor anda armado? - indagou o Pedro.

A resposta me fez perceber o desafio que topei enfrentar ao fazer aquela simples pergunta.

– Não. Tem, tem tom - soltou no ar.
– Oi? - o Maycon tentou entender.
– Tem tom – repetiu.  Fizemos curso no tempo do Lísias, né. Isso tudo quem deu foi ele. Tem coisa agora que tá pra vir: uniforme, calçado. Primeira essa daqui – apontou para a botina, erguendo um dos pés – essa daqui estava encostada, essa botina. Aí eu pedi lá pra eles. Aí só tinha 43 e o meu é 41. Aí falei ‘iii’, mas a minha botina, o segundo par tá furado, eu falei pro João – gagueja – que fica lá na secretaria. Aí “essa mulher”; eu pedi pra ela polir. Aí é o primeiro par da guarda. Aí fui olhar e tava melhor do que a outra, o segundo par, né. São só dois par que a gente tem. Peguei, falei: passa, olha só como representa nova, passa, passa, é essa mulher que zela tudo; passa graxa, pomada e tinta. Pois, ficou levinha. É mais levinha que a outra pra correr; ela é lisa pra andar na chuva, ela fica lisa no barro; barro não, na água. Já levei tombo de correr. Tem que andar rápido. E a outra lá eu levei na secretaria, fui calçado, mostrei pro João e disse: se chover, o tempo tá bom agora, vai entrar água. Se eu soubesse onde comprar, que tem essa proteção – bate com uma das mãos um pouco abaixo da canela. Porque se você leva um coice não machuca. Ela é fofinha – falou, sem precisar ser instigado em nenhum momento.

– O senhor se sente inseguro? - perguntou o Maycon, tentando achar algo que tivesse nexo.

– Se eu for falar, vou falar na frente do patrão. Perante juiz de direito de sentenças penais. Sou primário, sei o caminho do bem e do mal. Não precisava porte. O bom proceder do cidadão não é o porte. O comandante que está lá em Curitiba aposentado falou pra mim, desde que ele era tenente ele falava: seu pai é “xujo” na polícia, apronta, apronta, arrebenta até parente de oficial. Vai preso. Você de piá foi um piá homem, porque não apronta – encerrou com chave de ouro.

Escrevendo agora, o que ele havia dito, fiquei ainda mais perplexo com a falta de linearidade de raciocínio. O “seo” Adão era alguém a ser desvendado. Uma coisa eu já havia conseguido compreender: a vida dele não tinha sido fácil. Há 30 anos perdeu a mãe que sofria com câncer. O pai, um comerciante e sitiante de Guaraniaçu, acabou jogando tudo fora, logo no começo da doença. Veio com a família – oito filhos e a mulher - para Cascavel e nas palavras de “seo” Adão “torrou todo o dinheiro com prostituição e coisas erradas”.

A delegacia era o destino quase certo do pai de “seo” Adão. “Eu vi várias vezes os policiais fazendo uma geral nele”, relembra o guarda. As algemas faziam justiça pelas pessoas agredidas, entre outras façanhas do progenitor do nosso personagem. Esses foram os momentos mais difíceis da juventude do guarda-noturno, mas a vida ainda reservava novos desafios para Adão Raimundo. 

Hoje o guarda culpa o pai pela falta de prosperidade. A família poderia estar bem instalada com o supermercado, que chegou a ser inaugurado, mas que em pouco tempo foi transformado em nada. Nessa época, além de cuidar dos irmãos, “seo” Adão era um projeto de comerciante. Atrás do balcão, em contato com os clientes, ele aprendeu aquilo que sustenta a sua educação até os dias de hoje: “Eu tenho as quatro operações, mas na hora de escrever um cheque tenho que pedir ajuda de alguém”.

Como todo ser humano, um dia “seo” Adão se apaixonou. A donzela era uma descendente de alemão, que vivia em Guaraniaçu. Os dois se conheciam desde pequeno e com o tempo os destinos se entrelaçaram. Casado perante a lei dos homens e divina, ele tentava esquecer as besteiras do pai, e construir dali em diante uma nova vida. Tinha tudo para dar certo... Mas não deu. 

Seu Adão já trabalhava como guarda-noturno na Escola Estadual São Cristóvão. A esposa tinha envolvimento com criminosos - assassinos especificando melhor. Era o começo do fim, tanto do casamento de “seo” Adão, como da prefeita de Mundo Novo/MS, Dorcelina Folador. A política foi assassinada no dia 30 de outubro de 1999 com seis tiros de pistola. Quando descobriu o envolvimento da mulher com o crime, “seo” Adão a deixou.

Preciso abrir um parêntese para fazer uma observação. No momento em que Seu Adão revelou o envolvimento de sua ex-mulher com o assassinato, o Maycon ficou perplexo. O jovem havia saído de Eldorado/MS - cidade vizinha do município que fora palco do crime - para vir à Cascavel cursar jornalismo. Durante uma entrevista, encontra um sujeito que conhece a história, e que de certa forma é ligado ao fato, que na época balançou todo o cone-sul de Mato Grosso do Sul. Coincidência? Há quem diga que sim.
Mas, vamos voltar para a história do guardião dos mortos. O período pós-separação exigiu de “seo” Adão energias dobradas. Com dois filhos sob sua responsabilidade, ele foi pai e mãe. Como trabalhava a noite, acabava tendo que levar os filhos para dormir com ele no serviço, para que não ficassem sozinhos. “Eu era responsável por tudo isso. Levava os filhos para a escola, e tudo mais”.

Foi dessa situação que o nobre Adão recebeu um título que ele faz questão de repetir, sempre que tem oportunidade. As palavras saíram da boca da diretora do primeiro colégio em que ele trabalhou, e “seo” Adão utiliza a fala, quase que como uma filosofia de vida. “’Seo’ Adão é um pai abençoado. Trabalha só pra criar os filhos...” Durante a nossa entrevista as duas frases foram pronunciadas inúmeras vezes. Em todas as ocasiões o ato era cercado de toda uma interpretação, quase um ritual.

A vida amorosa só voltou a ficar agitada há 6 anos quando  - utilizando as palavras do próprio protagonista da história – “essa mulher” (atual esposa) cruzou o caminho dele. Resolveram se “amigar” e a união deu certo.  Atualmente vivem em uma casa alugada por R$ 180, no bairro Cataratas. Ela cuida da casa; ele você já sabe, não é mesmo? Um dia pode estar garantindo que você “descanse em paz”.

São 23 anos como guarda, sendo 20 no período da noite e destes, 4 no cemitério central.  A escuridão e o silencio são companheiros inseparáveis de trabalho. Talvez, justamente por estar sempre sozinho durante o turno de trabalho, “seo” Adão aproveitou a nossa companhia para dizer tudo o que não pode dizer em todos esses anos de profissão. 

Estávamos à mercê de um “quase” monólogo, ditado pelo velho cidadão. Acompanhamos ele por várias ruas cercadas de túmulos e mais túmulos. Era comum ele falar sobre a profissão, por exemplo, ou sobre outro assunto e tentar buscar uma referência, que não fazia sentido para a ocasião. Ele tentava encontrar pessoas quem fossem nossas conhecidas, sempre sem sucesso.

– Vocês conhecem a doutora Shirlei?
– Vocês conhecem o Tolentino?
– Vocês conhecem a Edite?
– Vocês conhecem o Léozinho, aquele loirinho da floricultura?
– Não. Não. Não. Não. - era sempre a nossa resposta.

Com o passar das horas começávamos a conhecer melhor o “pai abençoado”. Apesar das dificuldades na comunicação, Maycon e eu começamos a aprimorar nossa habilidade em filtrar e refletir sobre o que realmente “seo” Adão estava querendo dizer. Tirando as repetições constantes e as histórias que vocês já sabem, surgiram outros fatos curiosos.

Quando perguntado pela morte, “seo” Adão sempre tinha uma opinião direta, afirmando que todos têm que ser enterrados na terra: “Pois nascemos da terra e temos que voltar pra lá”. Por conta disso, sua opinião sobre as outras opções de sepultamento eram sempre negativas, mas sem nenhuma justificativa convincente:

– Eu sou contra queimar. Eu sou contra, porque eu sou católico e Deus não deixou pra queimar a gente quando morre.
– O senhor acha que é errado? – perguntou o Maycon.
– Eu acho que é errado.

Outra constatação que tive durante a entrevista foi que o guarda tinha uma séria mania de perseguição. Todos que passavam perto do cemitério queriam lhe “pegar”. Dentre essas histórias, uma se destacou. Foi quando “seo” Adão começou a nos contar quando alguns “malandros queriam acertar as contas” com ele:

– Eu tocava o pio em uma sala pro outro guarda copiar. Aí falavam: fica nessa sala e não saí fora. Aí eu ficava com a porta aberta. (Eu e o Maycon nos entreolhamos como quem queria dizer: “Lá vem bomba”)
– Quando o senhor fala pio é o alarme, o que é? –  perguntou o Maycon.
– Não. É o meu... meu pio.
– Mas o que é pio? – insistiu o Maycon.
 (“Seo” Adão ri).

Em mais uma resposta, o pai abençoado se complica, mostrando a grande dificuldade que ele tinha em explicar - como descobriríamos a seguir - algo extremamente simples:

– Assim, quando... o pio é quando você chega no portão, chega a ronda, toca a sirene da viatura, toca o pio também...
É uma sirene então?
– Não... pio que nós temos pra comunicação. Você chega chama ‘o guarda’ ou alguns chamam ‘seo Adão’ né. Sabe que é conhecido. Daí eu pego e toco o pio pra dizer que eu estou indo atender. Se você esta em perigo, pra se comunicar com o guarda do ginásio, você dá um pio tá tudo bem. Volta e meia dou um pio, eles entendem que está tudo bem.
– Depois o senhor mostra pra gente então! – o Maycon disse com ar de cansaço.

Pedro e eu só descobrimos o que era o “pio” algum tempo depois. Eu já não me lembrava do assunto, quando fomos conhecer onde o guarda se abriga. O local, conta com um sofá espaçoso, televisão, geladeira, mesa com cadeiras e pia. Provavelmente enquanto chamávamos “seo” Adão, o mesmo estivesse esparramado pelo assento almofadado com o cérebro em off. Enquanto íamos explorando o espaço, o guarda ia pedindo desculpas pelo cheiro de tinta. Foi quando ele se lembrou que tinha prometido mostrar o “pio”.

O zíper de uma bolsinha azul foi rangendo até encontrar a outra extremidade.

– Vou mostrar pra vocês o meu pio – disse, pegando na mão o objeto que ainda não havia sido revelado.
Na minha mente a mão do guardião abria em câmera lenta. A expectativa fazia com que eu visse a cena dessa forma. No entanto, quando o movimento terminou e o objeto prateado pode ser visto, senti um balde de água fria.
– Ahh! É um apito! – falei, com tom de desapontamento e surpresa.
 – Sim. Esse é o pio, olha aí! – disse o guarda, com jeito de quem estava com uma pepita de ouro na mão.
– Esse apito funciona assim – apitou, fazendo com que meus tímpanos gritassem por causa do eco. Se você apita uma vez é sinal que está tudo bem. Então, eu apito aqui e os companheiros sabem que o Adão está bem. Se eu apitar duas vezes. É perigo. Três vezes, aí pode vir que já estão em cima de mim – finalizou.
A história do pio já havia sido esclarecida. Algo tão simples, havia se tornado complexo. “Seo” Adão conseguiu criar suspense em torno de um apito que pode ser comprado por qualquer cidadão.

Apesar do Maycon e eu conseguirmos esclarecer algumas das dúvidas que obtivemos durante a entrevista, outras muitas ficarão eternamente guardadas em um túmulo do cemitério central. A que mais me incomodava era o porquê o pai abençoado se referia de um jeito tão indiferente e grosseiro a sua atual mulher, nomeando-a como “essa mulher”.

O meu colega de matéria chegou a esse ponto após uma resposta sem nexo. Nós estávamos apoiados em um túmulo quando o Pedro resolver esclarecer esse assunto. Ele realmente tinha ficado encasquetado com a história e foi assim que surgiu a pergunta.

– Por que o senhor se refere a sua atual esposa como “essa mulher”, e não como minha esposa? – alfinetou o Pedro.

Silêncio.

– Porque ela está me respeitando, né. Ela respeita, a gente deixa ela em casa e ela não se envolve com coisas erradas. E ela ajudou a cuidar dos filhos – respondeu o pai abençoado.
– Mas o senhor está casado, não está? – rebateu o Pedro.
– Não. Eu to amigado só.
– Mas está casado, só não está assinado né?
– Só que eu fiz bastante de coisa. No banco Itaú, fiz seguro. Ela tem cartão de crédito, a gente fez junto lá... – se perdeu no próprio raciocínio.

O trabalho no cemitério ficou fácil depois da instalação da cerca elétrica e do alarme. Por esse motivo, ou não, seu Adão começou a zelar por seus “vizinhos” também.

O pai abençoado que só trabalha pra criar os filhos já havia citado, entre suas diversas divagações durante a entrevista, que ele sempre ligava pra polícia quando via alguma movimentação estranha nos arredores do cemitério. Em uma das nossas caminhadas, ele começou a nos contar mais uma das suas:  

– Subi no túmulo, uma hora da manhã. Tinha um cara sondando ali e eu pensei que ele tava querendo alguma coisa comigo, né? Com uma pastinha na mão. Aí eu peguei,  trepei ali. Passou um carro preto, tipo uma Brasília. Desembarcou dois caras, uma hora da manhã. E o cara tava na moita, ali na praça, em frente ao ginásio. Eu pensei que ele tava de butuca em mim. Aí eu tinha um tijolão (entendemos que era um celular, mas, aprendemos durante a noite que poderia ser qualquer coisa),peguei e puxei. Entraram pra assaltar. Chamei a polícia. Dez minutos já vieram dois motoqueiros da Polícia Militar e mais duas viaturas; e já estavam algemados os caros. E eu desci ali onde tem aquela gradinha de pérola, ali no canto.
Alguns passos a mais e chegamos ao local aonde ocorreu o fato.

– Vem aqui pra vocês verem onde eu subo. Até funcionário daqui falou pra mim que eu sou caguete morto, por causa que eu costumo entregar pra polícia quando eu vejo que vai assaltar. Olha daqui que eu peguei o cara – disse em cima do túmulo. Agora eu tenho que olhar tudo, ficar atento. O cara tava ali ó – apontou para uma loja de informática.  

Para acompanhá-lo, subi no túmulo e fiquei ao seu lado para tentar reproduzir o fato em minha imaginação. Enquanto o Maycon estava no chão, fiquei ali ao lado de Seu Adão, que me contava a história inteira mais uma vez. Cansado de ouvi-la, comecei a reparar no túmulo em que estávamos sapateando, pulando e que era o que “seo” Adão sempre subia. A surpresa foi grande. Deparo-me com o túmulo de uma das famílias mais tradicionais de Cascavel. Chamei o Maycon:

– Olha de quem é o túmulo que a gente está em cima...

Quando reparou, meu colega caiu na gargalhada, enquanto seu Adão continuava pulando, apontando, como se estivesse revivendo a história.

Apesar de vivermos em mundos diferentes, o tempo que passamos com o “pai abençoado que só trabalhar pra criar os filhos” foi marcante. Mesmo não entendendo e concordando com quase nada do que ele falava, acreditamos que Adão tenha sido vítima da sociedade. Sem estudos e com dificuldades familiares extremas, o guardião continuou firme na luta pra sobrevivência.

Outra hipótese que discutimos é a de que ele, com muita vontade de expor o que sentia, muitas vezes (leia-se a maioria), não conseguia dizer nada de forma compreensível. Durante o tempo em que escrevemos essa matéria, começamos a tentar imaginar o que se passava no cérebro daquele homem, enquanto estava em nossa companhia. Como eram os pensamentos? O que ele pensava? Por que falava daquela forma? Essas perguntas não podem ser respondidas, mas as respostas podem ser imaginadas.

Queremos destacar também que ele se mostrou muito atencioso desde a nossa chegada. Por mais que tivemos problemas de compreensão, fomos tratados muito bem. Caminhamos por todo o cemitério, vivenciamos algumas horas em um lugar que é visto de olho torto pela sociedade, durante o período da noite, e principalmente conhecemos a figura que se destaca em meio aquele silêncio. Adão Raimundo nos proporcionou a experiência de conhecer um novo tipo de brasileiro. Sem classificação. Único. Um Adão Raimundo, pai abençoado que trabalha para criar os filhos, usa bota com proteção; ele conhece a Shirlei, o Tolentino, o Léozinho da floricultura e é casado com “essa mulher”.

Estávamos nos despedindo, andando em direção ao portão, quando “seo” Adão lançou uma pergunta como forma de despedida:

Vocês acham que se o guarda ver lá fora, alguém arrombando uma empresa, não pode entregar pra polícia?

[....]


Maycon Corazza
Pedro Sarolli

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Coisa que brinquedo não entende

A porta se abriu de uma forma como nunca havia visto antes, em um movimento vagaroso. Daqui de dentro eu aguardava as mãos delicadas do meu dono, que tocariam em mim, como em todos os dias. A luz invadia o escuro que tomava conta da minha moradia. Logo vi o rosto do garoto que sempre me escolhia para as mais impressionantes aventuras criadas pela sua mente. Foi nesse momento que percebi que algo de errado havia acontecido; que hoje não haveria brincadeira, encenação, diversão.   

Aqueles olhos que sempre brilhavam, formando uma sintonia perfeita com o sorriso, dessa vez estavam diferentes. Eu não conseguia compreender o que significava aquela água escorrendo pelo rosto dele e aquela face desmontada. Talvez por ser um brinquedo, coisas humanas não se encaixem no meu mundo, e eu fique sempre perdido quando o roteiro é quebrado. Em vez de brincadeiras às vezes me deparo com cenas de algo que eles, humanos, chamam de sentimento. 

Depois de me encarar por alguns minutos, seus pequenos dedos me envolveram com facilidade. Não senti firmeza nos movimentos. Seus olhos se perdiam como se avistassem um labirinto. Me segurando em uma das mãos, fechou a porta do local que ele chama de armário. Agora me segurava firme, olhando para mim com o rosto encharcado. Eu queria fazer perguntas. O que acontece companheiro, que hoje não me joga para cima, me dá nomes diferentes e monta histórias de repente?  Por que está tão ofegante, aflito? Cansou-se de mim?


Parece até que ele me ouviu. Começou a soluçar e formar frases. “Pai”. “Mãe”. “Acabou”. “O que vai ser agora?”.  Essas palavras saíram sem nexo, soltas no ar, como se o que ele queria dizer não tivesse sentido nem mesmo a ele. Então, resolveu se sentar, desabando no chão coberto por um tapete, que em dias normais se transformava em mar, estrada, chão da lua. Ele me apoiou em cima das pernas, me acariciou e deu início a um monólogo interrompido com freqüência por suspiros, soluços e mais daquela água que brotava dos seus olhos.

- O que será de mim agora? Acabou tudo. Meus pais se separaram, não serão os mesmos. Eu não vou ser o mesmo. Por que isso tinha que acontecer? Me diz! Você não deve entender, nem imaginar.
Realmente não sabia do que se tratava, estava angustiado, queria resolver os problemas dele, ser o herói da brincadeira, mas só podia ouvir. E de repente o silêncio tomou conta do ambiente. Ele me segurou com firmeza, colocou-me perto do seu rosto e eu sentia o carinho daquela atitude. Ficou assim por alguns minutos, paralisado. Nesse momento quis ser humano, poder entender o que acontecia; ajudá-lo, retribuir o carinho.

“Filho”, a voz grave se fez ouvir. Conhecia aquele homem que tinha mania de chamar meu dono de filho, mesmo sabendo que o nome dele era Maycon.  O rosto do gigante estava pálido e aquela água brotava dos olhos dele também. Uma das mãos estava ocupada por um objeto com alça. O chamado fez com que eu fosse colocado no chão e meu dono se levantasse e corresse em direção ao homem de grande altura. De onde eu estava não consegui ouvir o que eles falavam. 

É, parece que foi ontem que aquele senhor esteve aqui pela última vez. Desde então nunca mais o vi por aqui. Vejo apenas aquela senhora que meu dono chama de mãe. Nunca mais vi o Maycon com os dois juntos, conversando, sorrindo. Comigo ele também mudou. Seu mundo mudou. E sempre ouço meu dono culpando uma tal separação. Coisa que brinquedo não consegue entender. 

Maycon Corazza

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Dia de Feira

Simone, Jéssica e Maria Fernanda. Três estudantes de jornalismo e um desafio: ser garçonete por um dia. Sentir na pele as dificuldades de lidar com a qualidade do alimento e o atendimento ao cliente. Para essa tarefa um ambiente comum nas manhãs de domingo entre os cascavelenses, a feirinha do produtor.
Esse espaço tem história não só aqui na cidade como em todos os lados do mundo. Ela já foi palco de cenas de novela como "A cor do pecado" onde o personagem de Tays Araújo vendia tapiocas. Também não deixou de fazer cenário aos golpes de Jack Chan em muitos dos seus filmes. E não para por aí, a feirinha tem a cara dos consumidores, pessoas buscando descanso e sabores que deixem o dia ainda mais especial.
 Nem mesmo a chuva atrapalha o café quentinho preparado pela Nena, o pastel fresquinho da Dona Zé, a tapioca da Neiva e da Leila, e nem mesmo o sabor das pamonhas preparadas pela Laís. E em pleno domingo de garoa fina, o chamado dia preguiçoso, lá estão todas elas com as barracas preparadas desde a madrugada esperando os clientes chegarem.
O atendimento deve ser tão bom ou melhor que o sabor de cada uma das delícias preparadas aqui. E, para que tudo isso aconteça uma peça é fundamental, a garçonete!
De longe um trabalho que parece simples. Sentadas aqui na mesa, consumindo, a gente observa que elas só precisam buscar e levar os pedidos de um lado para o outro. Então, vamos ao trabalho: Jéssica Moreira na barraca de tapioca, Simone Lima na do pastel, e na barraquinha da pamonha Maria Fernanda.
Em pouco tempo já deu para ver que estar do outro lado da história não é fácil. Produzir ao invés de consumir, exige um esforço bem maior, mental e físico.

Pamonha, olha a pamonha, baratinha!
Fui muito bem recebida pela Laís, que com entusiasmo me contou que havia chegado as 06h45min, tem apenas 15 anos, ajuda na confecção das pamonhas e nas vendas, ainda não tinha terminado o assunto e já chega um cliente - “bom dia, me vê uma pamonha doce, pra levar”, fiquei atenta a cada gesto de Laís, eu não poderia decepcionar seus clientes.
Dessa vez uma senhora chegou à barraca, Laís muito educada falou baixo: “é com você”. Os idosos em geral são muito simpáticos: “bom dia minha filha, eu quero uma pamonha doce”, Pra levar ou comer aqui? ”pra levar”, peguei a pequena sacola plástica que deu um pouco de trabalho para abrir devido à umidade, entreguei para a senhora - “quanto é moça?” R$ 2,50. Estava tão preocupada em atender bem e não derrubar nada, que se ela não perguntasse o preço talvez tivesse esquecido de cobrar.
Terminei de atender e não me contive. Como fui Laís? “ta certinho é assim mesmo”.
A minha barraca era no corredor central, na frente tinham produtos orientais, do outro lado eu conseguia ver muito bem minhas colegas Simone e Jéssica. Si estava um pouco preocupada ainda, conversando com as moças. A Jé não perdeu tempo, estava saboreando uma tapioca.
Era cedo, tinham muitos idosos na feira, fazendo as compras para semana, alguns levavam os quitutes para tomar o café em casa, outros comiam por ali.
O movimento estava bom, havia atendido meu primeiro cliente, estava mais tranqüila.
Aos poucos o movimento foi aumentando, um cliente aqui, outro ali, em alguns momentos nós duas estávamos atendendo. Um senhor reclamou do aumento de cinqüenta centavos, Laís explicou que nessa época está difícil de conseguir o milho, os fornecedores estão cobrando a mais, o senhor retruca “mas vocês precisam ter plantação”, Laís entrega o troco e com sorriso no rosto agradece o cliente.
O tempo foi passando, não é fácil ficar o tempo todo em pé, vento gelado, com chuva fina, mais ou menos 15⁰.
Com o olhar procuro novamente minhas colegas, Simone estava junto às atendentes conversando com clientes. Para minha surpresa a Jéssica estava fazendo tapioca, toda jeitosa, curioso é que não tinha cliente na barraquinha, a tapioca era para ela, Simone e eu experimentamos e aprovamos!
Sem dispersar muito voltei à atenção para minha função, o legal de estar na barraca da PAMONHA, é que as pessoas que chegavam ali já sabiam o que queriam, a maioria prefere o quitute doce, de 22 pamonhas vendidas durante o tempo que estive ali, apenas uma era salgada.

Quem "qué", quem "qué" o pastel da Dona Zé?
Viver a realidade de uma garçonete na feirinha é um tanto desafiador e também cheio de ansiedades. Um dos primeiros pensamentos que surgem é: RESPONSABILIDADE, afinal de contas, servir as pessoas é exercer um cargo de confiança.
Na Barraca da Zé tudo é organizado: uniformes brancos, lavatório, panos de prato limpos, bandejas, enfim, um local que lembra limpeza e praticidade. Se não fosse o clima chuvoso, a barraca já estaria “abarrotada” de gente, isso sem contar que o movimento fica mais intenso na metade da manhã que é quando acaba a  missa matinal e os fiéis saem famintos rumo à feira. 
Já são sete anos de serviço no mesmo local, dias de feira vividos entre chuva, sol, calor, inverno, dificuldades e bonança, mas que hoje refletem em experiência e satisfação no rosto da proprietária da barraca de pastel mais freqüentado da feirinha municipal.
O tão conhecido mau humor matinal não pode estar na vida de uma garçonete, ela tem que no mínino receber as pessoas com um cumprimento simpático e verdadeiro. Cliente é inteligente, se ele se sente bem acolhido, certamente voltará.
De repente dois, três, cinco pessoas fazendo os seus pedidos. Veio a apreensão, comecei a observar a expressão dos clientes, eles ficam indecisos entre os sabores. A vontade é de  ajudar a decidirem. Calma, tenha calma! Quantos guardanapos se podem entregar? Gostam de catchup ou maionese? Tá muito quente o pastel? Será que a dona da barraca se importa que eu  converse um pouco com a cliente ou isso seria “matar o tempo”?
“O cliente tem sempre razão” – isso pode ser óbvio para quem está do lado de fora do balcão, mas quando se está desse outro lado o medo de cometer um deslize é real. Devolver um troco errado, um objeto estranho no alimento, um pedido equivocado. Sim, isso pode acontecer.
Quem quer pastel e café com leite, quer também um “bom dia”, um sorriso estampado no rosto, um bate-papo descontraído enquanto saboreia o queijo derretido no meio da massa crocante. Conversei mais que dez minutos com a Dona Delsa, uma catarinense de 65 anos, ex-bancária e hoje corretora de imóveis, ela me contou que vem durante a semana na feira e todos os domingos ela toma o seu café da manhã na Barraca da Zé. Para ela, é um prazer vir na feira.    
A chuva intensificou, as cadeiras e mesinhas de plásticos estavam molhando , temos que colocar em pé as cadeiras para não empossar a água, isso foi rápido. Abaixar o toldo para que não molhem os clientes. Na barraca da Zé tem esse conforto.  Olho para as minhas amigas nas outras barracas, elas estão lá, assim como eu, atentas e conversando com as proprietárias, certamente tentando aprender mais sobre esse universo.      
Me aproximo de uma família que chegou na barraca e descubro que eles não são do Paraná, são do Mato Grosso do Sul e vieram conhecer a feirinha. Noto que para eles essa experiência está sendo muito agradável e  a vovó está nitidamente feliz por estar ali com a filha, o genro e os netinhos. Resolvo não “esticar” o assunto e deixar eles desfrutarem desse tempo precioso em família.
O tempo está acabando, a chuva está ficando mais forte. É hora de ir embora. As pessoas ainda estão sorrindo e logo vão pedir o segundo pastel. Mas temos que ir embora. Me despeço, agradeço a oportunidade e saio dali pensando: “ ser uma garçonete na feira é relacionamento, é servir aos outros com alegria,  eu deveria vir mais na feira”. Enfim, o domingo apenas começou e  com certeza, assim com eu, muitos ali foram para as suas casas na expectativa de que no próximo domingo tem mais pastel, tem mais feirinha, tem mais alegria!   

Quem quer tapioca fresquinha?
Atrás da barraquinha de tapioca, a correria é grande. Ainda bem que a chuva assustou os clientes e deu tempo até de aprender a fazer uma tapioca. É bem simples de entender "como" se prepara uma tapioca, a dificuldade está na hora de executar cada um dos passos em menos de três minutos. Para quem costuma usar só o microondas ver o fogão já assusta, eu fiquei com as pernas bambas na hora de fazer, mas aprendi. Consegui até guardar na cabeça a receita: duas colheres de farinha com polvilho na panela quente, coloca o recheio, fecha como um pastel, coloca no saquinho. Aí vem a receita da ordem de ações de uma garçonete, que deve ser cumprida a risca: leva o produto na mesa de quem fez o pedido pega o dinheiro, vai na barraquinha pega o troco, retorna a área das mesas e entrega as moedinhas que sobraram.
Esse percurso não é grande, mas é bem apertado. Entre uma barraquinha e outra a distância é de um metro. Em frente à barraca, ficam as mesas a céu aberto, e dentro dos 4m² da barraquinha fica toda a produção das “tapioqueiras”. Que não param um minuto!
Contando assim para bastante simples, até mesmo fácil. Fácil? Em uma manhã de produção, pés inchados e muita dor de cabeça. O esforço de uma garçonete não é fisicamente pesado, mas exige raciocínio rápido e muita simpatia. Aquela velha história de que essas profissionais são os ouvidos dos que passam por ali, é bem verdade. Nas horas que fiquei na barraca da Dona Lílian e da Dona Nívea escutei pai reclamando filho, filho falando da mãe, marido contando sobre a briga com a esposa, e, principalmente, homens e mulheres questionando o tempo: será que essa chuva vai continuar por muitos dias? A resposta sempre acompanhada de um sorriso, e claro, da típica frase: mais alguma coisa?
As conversas cordiais e os atendimentos ficam divididos entre os dois ambientes que a cada minuto tem o cenário alternado pela passagem de algum cliente, pelo próprio corre-corre das proprietárias. Enquanto as famílias e os “casaizinhos” aproveitam as deliciosas tapiocas, eu atrás do balcão limpava as vasilhas de farinha, as colheres que ficam dentro dos recheios, as panelinhas em que a tapioca fica para endurecer.
Daqui consigo ver também as minhas colegas, a da pamonha e a do pastel. No começo meio perdidas como eu. O medo do trio era um só, derrubar tudo pelo chão, já que temos uma característica em comum, ser desastrada. Depois de habituadas ao ambiente, as tarefas começaram a ficar divertidas, quando vimos o tempo já tinha passado rapidinho, e o que sobrou foi mesmo uma grande experiência.
 No fim das contas, o que dá para se ter certeza é de que com muito jogo de cintura as garçonetes mantêm a clientela cuidando do atendimento e da qualidade do produto servido. A rotina de quem acorda às 6h30 da manhã para ajudar a organizar tudo o que deve estar pronto quando o primeiro cliente chegar é cansativa e ao mesmo tempo muito gratificante. A cada pedido atendido corretamente, o sentimento é de dever cumprido. E, essa sensação de garçonete só mesmo quem viveu para saber como é!  
Saímos da Feira com o sorriso lá na orelha, não derrubamos nada! Fizemos tudo direitinho e de quebra levamos muita história para contar... Que domingo!

Jéssica Moreira
Maria Fernanda Kusmirski
Simone Lima