sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Helicóptero Latrônico: lembranças de um sonho quase voador

por Marcele Antonio

Os anos de 1980 e 1981 tiveram uma importância peculiar para Seo Darci Latrônico. E dos detalhes desses anos, seo Darci se lembra muito bem. Ainda mais quando se reencontrou com duas fotos da época. Fotos com lembranças suficientes pra que ele entrasse em um intenso processo de nostalgia, recordando aquele tempo em que fez sua maior engenharia: um helicóptero. “Eu gostava muito de filme de aviões, helicópteros. E resolvi fazer o meu. A intenção era usar pra passar veneno na lavoura”, conta seo Darci.
Estrutura, motor, câmbio, pás de hélice. Na época, aos 33 anos, ele providenciou todos os materiais e calculou cada pedacinho do helicóptero com a inteligência de um engenheiro. Na entrevista, seo Darci chegou a citar fórmulas físicas, explicar sobre força centrípeta, centrífuga... Coisa de gente curiosa, ousada e com muita experiência em mecânica.
 O helicóptero levou seis meses para ficar pronto, com tudo o que precisava, mas com muito peso pra voar. “Não chegou a voar porque ficou muito pesado, tivemos o cuidado de colocar em uma balança: 315 quilos”. Isso porque a estrutura foi feita com ferro e as pás de hélice em madeira. “Mas chegou a pegar frente e começou a flutuar”. Depois disso, seo Darci pensou em refazer as hélices usando alumínio. “Mas logo em seguida já vieram os chamados ultra-leves, então desisti do meu helicóptero”.
Seo Darci ainda fazia testes em 1982, mesmo ano em que as duas fotos foram tiradas. As imagens já mostram que a engenhoca ficou famosa: muita gente ficava curiosa e até hoje se pergunta se esse helicóptero realmente existiu. As pessoas que estão nas fotos podem comprovar que existiu sim, e ao menos, saiu do lugar. Pelas recordações de seo Darci, foi possível identificar três dos cinco garotos: Celso Lino, Ricardo Latrônico e Paulo Cardoso. As fotos foram tiradas no sítio da família Latrônico, em Terra Roxa, e hoje são os únicos registros da existência do helicóptero, fora as pás de hélice, que continuam intactas, guardadas no sítio. “O motor eu coloquei na minha brasília”, acrescenta.
Hoje, aos 64 anos, seo Darci conta que deu umas voltas com um helicóptero moderno, sobrevoando a cidade. Segundo ele, foi bom, mas não é a mesma coisa. Não tem o mesmo gosto de voar em algo projetado por ele. “Se me trouxessem todos os materiais certos hoje, não sei se eu faria, não tenho mais a mesma vontade”, desabafa. Mas logo foi desmentido pela esposa, dona Isabel Latrônico, que acompanhou toda a entrevista. “Ah, você faria sim, do jeito que é curioso”, disse dona Isabel, num tom quase de ordem. Uma verdade incontestável: o combustível do senhor Darci Latrônico é mesmo a curiosidade, que um dia o levou a ter um sonho quase voador. Segundo ele, sonho que “não voou, mas levantou poeira, fez medo e barulho, como num helicóptero de verdade”.




domingo, 29 de maio de 2011

IntercomSul 2011 - Reflexões sobre um congresso aproveitado ao máximo!

por Marcele Antonio


Imagine 1500 alunos de Comunicação se encontrando durante três dias para expor trabalhos, trocar experiências e ouvir grandes profissionais da área! Agora pense nisso sem barreiras entre habilitações: quem é de Jornalismo tem acesso à Publicidade, quem é de Publicidade tem acesso ao Marketing, que tem acesso à comunicação audiovisual... Engrandece e abre horizontes. No IntercomSul 2011, em Londrina, quis aproveitar ao máximo as apresentações, palestras e oficinas. Com os meus colegas isso foi ainda mais proveitoso.



Na quinta-feira (26), abertura do evento, conhecemos o Presidente da Intercom, Dr. Antonio Carlos Hohlfeldt. Engajado, esperançoso, revigorante. Conhecemos também a professora Marialva Carlos Barbosa. Crítica, afiada, certeira. Ah, nessa noite, ainda, um instrumento simples ficou incrível nas mãos de umas lindas senhorinhas de um grupo de acordeon, de Londrina. Cantaram e encantaram a gente: cantamos, levantamos, interagimos.


A abertura já dava o start de um congresso que tinha tudo para ser cheio de aprendizado, de descobertas. E foi mais. Foi autoconhecimento, sem exagero. De tudo, guardo a oficina com Sergio Vilas Boas como a minha melhor escolha no Intercom. Imprevista por mim, e até pelo oficineiro. Peguei a oficina nas vagas remanescentes, e e o Vilas Boas, substituiu o escritor José Castelo. Foi surpresa e coincidência, que um pouco antes, comprei um livro do Vilas Boas sem saber que ele estava no congresso, circulando e compartilhando seu conhecimento. Não perdi tempo. Participei da oficina – Perfis e como escrevê-los – mesmo nome do livro. Encantadora. Voltei a sentir vontade de escrever. Vilas Boas deu dicas pontuais, mas antes de tudo, refletiu com a gente sobre os tantos personagens que podem vir a ser perfis. Desconstruiu algumas ideias que tinha, amadureceu outras e principalmente, me instigou a procurar por esses personagens, a escrever sobre eles. Talvez tenha descoberto um lado do jornalismo que já havia passado os olhos, mas só agora enxerguei. Sergio Vilas Boas é jornalista com pensamento positivo, e transmitia isso até na maneira de andar: tranquilidade. Não precisamos nos apavorar: existem alternativas para se trabalhar com o que gosta. Dá pra viver nessa profissão, sim, e não só, sobreviver.



Pra se ter noção da qualidade do evento, considerei a oficina do Vilas Boas a melhor de todas as participações, mas olha as outras: Sandro Dalpícolo, da RPCTV falando sobre o livro “Uma nova luz na sala” e Laura Rejane, do Sportv, falando sobre o projeto “Passaporte Sportv”. Cara, é um banho de experiência. E o melhor de tudo, todos esses jornalistas nos entendem enquanto estudantes, nos olham com olhar de quem já ocupou as cadeiras universitárias e fazem de tudo pra melhorar nosso aprendizado. Facilitam nossa vida, dão conselhos, são acessíveis, disponíveis. Gente que quer ver a profissão seguir em frente renovada, com a nossa cara.


E aí serviu pra aprendermos uma lição: temos trabalhos ótimos que precisam ser mostrados! Nenhum deles escapa de estar inscrito no próximo Intercom. E entre outras coisas, dá pra se divertir, dar muita risada, e agradecer, profundamente, aos professores: lembramos deles a todo momento, em rádio, TV, impresso, web, pesquisa, assessoria. Enfim, resumo a viagem para o IntercomSul  com uma das ótimas frases que Vilas Boas nos falou: “Precisamos estar atentos às pessoas que fazem e não às pessoas que dizem que fazem”. 

Linda, linda



Ele tinha os olhos fixos na mocinha que estava sentada, lá no canto da discoteca, na pequena cidade de Imaruí, Santa Catarina. Todas as mulheres que estavam no baile dançavam e tentavam ter, pelo menos, um tiquinho da atenção dele, mas a única que havia ganhado merecimento de profundo olhar era ela: Maria de Fátima de Souza Lima. No meio da festa, começa a tocar uma música romântica. No ambiente ouvia-se Tim Moore cantar “Yes”. O moço parecia ter ouvido a deixa da canção e se aproximou dela. O jovem Alaor segura a mão que iria acompanhá-lo por mais tantos anos.
Ah, o destino. A moça nem queria ir ao baile. Sentia-se envergonhada pelo que havia ocorrido um ano e meio antes: apaixonou-se por um rapaz, que passava todos os dias em frente ao seu trabalho, em Florianópolis. Uma amiga dela namorava o primo desse amor platônico e fez as formalidades de apresentação. Daí em diante, foi um curto passo até o namoro. O nome dele era Patrício. “Ele era muito galinha”. E em meio à paixão, a catarinense acabou engravidando do Patrício. Ele fugiu da responsabilidade, como seus homônimos da Roma Antiga fugiam dos tributos.
E a Maria? Ficou desolada. “Sofri muito, porque eu o amava. Ele foi meu primeiro homem”, conta entristecida. Pensava na vergonha que estaria causando a seus pais. Mas o amor do seo Antonio e da dona Idalina não se abalou por isso. Eles acolheram a filha grávida e cuidaram-na como se fosse uma princesa.
Foi justamente o seo Antonio que aconselhou a filha a ir ao baile que mudaria a vida dela. Ele percebia que ela andava triste, cabisbaixa, e queria vê-la feliz. “Meus pais me amavam de paixão”.
Depois da primeira dança, uma vida inteira seria dividida. No outro final de semana, Alaor foi à casa de Maria pedi-la em namoro, e quando já fazia três meses que estavam juntos, convidou-a para vir conhecer a família dele, que morava em Cascavel, Paraná. Ficaram 3 dias aqui. Depois retornaram para Santa Catarina.
Tudo ia bem. Eles planejavam “juntar as escovas de dente” logo. Mas um desastre acabou adiando a união. No dia 18 de novembro de 1986, Maria estava voltando de uma cidade vizinha com seu patrão e os filhos dele, quando sofreu um acidente de carro. Ela tinha ido regularizar os documentos para o casamento. Ela se machucou bastante e ficou engessada por um mês. Somente no dia 23 de dezembro o sonho dos dois pode ser concretizado: vieram para Cascavel, construir sua vida a dois.
A situação não era das melhores. Por isso, ela deixou o filho, Lucas, com seus pais, em Imaruí. Depois de um ano no oeste paranaense foi buscar o filho.
“Passamos fome, foi muito difícil. Eu morava num paraíso, com meus pais e não sabia.” Alaor ficou sem emprego por um tempo e Maria, como não conhecia nada na cidade, também não foi atrás de trabalho. Lá, em Imaruí, a vida era farta. Ela, os pais e os 14 irmãos moravam em uma fazenda, que o seo Antonio herdou de seu pai. “Um lugar lindo. Tinha vários animais, um cafezal, um engenho de farinha de mandioca. Tínhamos do bom e do melhor”, enfatiza. O pai cuidava das lavouras e dos animais, e a mãe trabalhava em um Colégio na cidade. Enquanto a mãe ganhava o dinheirinho para ajudar no orçamento da família, Maria cuidava dos irmãos e da casa. “Depois que comecei a cuidar da casa, minha mãe não sabia nem onde estavam as cuecas do meu pai. Tudo era eu quem fazia.”
Os problemas em Cascavel se agravaram quando o filho de Maria veio morar com ela e o marido. Alaor tinha ciúmes do menino, que recebia muita atenção da esposa. “Eu venci essa batalha, com muita conversa e cautela. Sabia que ele um dia iria relevar e perceber que se desse amor, receberia amor do meu filho.” E foi o que aconteceu. Alaor até registrou o menino.
Logo, Lucas ganhou uma irmãzinha, Isabela. E dois anos depois veio a Jéssica. A família estava  formada. E falar de família com a Maria é pedir para que seus olhos se encham de lágrimas. Ela recorda com muita riqueza de detalhes a relação que tinha com os pais e que, mesmo com todos os empecilhos no caminho, o sentimento jamais foi, sequer, arranhado. “Vou visitar minha família de vez em quando. Meu pai, infelizmente, faleceu, e minha mãe ainda está viva, com 80 anos, doentinha. Antes de meu pai ir embora para sempre, lembro que assim que eu chegava na porta de casa, ele exclamava: ‘Oh, linda, linda que bom que você chegou’. Aquilo enchia meu coração de amor, respeito e carinho por aquele homem que tanto me ensinou na vida.”
Hoje, Maria trabalha em uma faculdade como faxineira. Seu marido é pedreiro. Os dois filhos mais velhos fazem faculdade. Os desafios da vida fizeram-na cada dia mais sorridente, com seus cabelos ruivos cacheadinhos e curtos que dão aquele ar de doçura e simpatia, os quais me aproximaram dela para contar essa história. Mulher lutadora. Quem diria que uma senhora baixinha, com uma voz tão calma e com tanta serenidade no olhar, poderia ter uma força de uma gigante para por a sua família nos trilhos do carinho, da harmonia e da compreensão? Pois é, essa grande esposa, mãe e pessoa fez das dificuldades escadas para conseguir ser feliz.


Por Tátila Pereira

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Adão, pai abençoado!

Em movimento pela Avenida Carlos Gomes, área central da cidade serpente. 

– Eu não tenho medo dessas coisas. Não tem nada a ver - disse o Pedro.
– É - foi o que o Maycon conseguiu dizer.
– Você tem medo? - questionou o Pedro.
- Ah cara já tive mais medo, mas depois que comecei a morar sozinho perdi um pouco. Mas quando era criança morria de medo dessas coisas, de ver alguma assombração.

Pedro dá uma risada que tem um som particular.

– Às vezes eu ia tomar banho, por exemplo, e vinham essas coisas na cabeça. Aí eu tomava banho mais rápido que não sei o que - completou o Maycon.
– Nossa que cagão que você era!

A Pajeiro do tio do Pedro já estava parada em cima da calçada. Estávamos a poucos metros do destino final. Havíamos saído da faculdade com o itinerário traçado e faltava apenas o portão ser aberto para que entrássemos na área mitológica. Naquela noite de quinta-feira íamos contra uma tradição: a visita a um cemitério deve ser durante o dia; de preferência ensolarado. Não somos rebeldes, apenas queríamos sentir na pele como é a vida de um guarda-noturno “daquele lugar”.

O relógio marcava 11h35min quando fomos chamar pelo guardião dos mortos.
– Adããão! - gritava o Maycon.
– Adããão! - eu insistia.

Gritamos mais um pouco. Tinha a sensação de que estávamos convocando o Adão de volta ao paraíso ou ao inferno. Para as pessoas que passavam pela rua deveríamos ser anormais. Tivemos que insistir mais algumas vezes. E nada. 

Pedro deu a volta no quarteirão e foi até o outro portão na esperança de que o guarda estivesse andando por aquele lado, e ouvisse nosso chamado. Da outra ponta eu podia ver o meu companheiro de aventura, porém não conseguia ouvi-lo. Impaciente, eu quebrava o silêncio.

– “ Seo” Adão! “ Seo” Adão!

A resposta? Apenas a imagem de lápides, cruzes e sombras.

Pedro voltou da sua tentativa frustrada. Resolvi ir até ao Ginásio Ciro Nardi que fica do outro lado da rua pedir ajuda para algum guarda patrimonial. Chegando lá expliquei tudo: que havia sido combinado previamente e que tínhamos autorização, mas que o Adão não apareceu, mesmo depois de gritarmos várias vezes pelo seu nome...

– Pois é. Ele sempre aparece por aqui e hoje ele não veio. Vou tentar ligar na central e pedir para que entrem em contato com ele - disse o guarda, trajado com uniforme azul, enquanto competia com ruídos de uma televisão.

Tirando o celular do cinto, ele ligou, conversou, explicou e ouviu a pessoa do outro lado da linha.

– Daqui a pouco eu retorno então - disse.

Conversei um pouco com ele sobre o nosso personagem. Tempo suficiente para que ele ligasse para saber se haviam conseguido contato. Ele tentou, mas não atendia. Tentou de novo, e nada. Decidi voltar até a entrada do cemitério para avisar o Pedro que talvez demorasse. E enquanto atravessava a rua vi um senhor de altura mediana andando em direção ao portão pelo lado interno do cemitério. Era “ seo” Adão.  Talvez por coincidência os ponteiros do meu relógio quase se uniam sobre o número 12.

– O senhor que é o “ seo” Adão?
– Oi. Sou eu sim – respondeu.
– Avisaram o senhor de que viríamos hoje aqui?
– Avisaram sim...
– Tem como abrir o portão?
– Só um pouquinho – disse o guarda, enquanto ia em direção a uma espécie de escritório/dormitório.

Quando ele abriu o portão, nos apresentamos, conversamos bem rapidamente e ele logo mostrou que tinha muita coisa pra falar. Foi nos conduzindo pela via central que corta o cemitério. Ele andava com passos duros, uma ginga de alguém que estava sempre pronto para virar o corpo repentinamente antes de ser surpreendido. Ao contrário do que era de se imaginar, ele não esperou por perguntas e logo iniciou uma fala frenética, contínua e confusa. As palavras saiam da boca daquele homem de 57 anos com muita facilidade.

– Desde quando eu trabalho aqui, há 5 anos, foi sempre bem tranqüilo. Uma paz. Exceto uma vez, quando um rapaz conseguiu pular o muro – falava enquanto o pé direito ultrapassava o esquerdo, assim sucessivamente. O rapaz queria queimar a ossada do avô dele. Eu vou levar vocês até o túmulo – interrompeu o raciocínio.

Maycon fazia seu lado simpático, mas meu nariz apurado não deixou de detectar em “seo” Adão, um hálito típico de quem estava dormindo. Isso justificaria com a sua vinda da guarita, onde futuramente descobriríamos que é um ótimo local para alguém dormir.

Pedro e eu continuávamos explorando aquele espaço que a noite tem características diferentes. Os túmulos parecem ter mais destaque e a morte ganha mais significado.  No caminho nos deparamos com o túmulo de um tio do Pedro que morreu no ano passado.

– Esse aqui é meu tio - disse apontando para a fotografia em uma moldura arredondada. Essa é minha bisavó - apontou para outra fotografia.

Nosso trajeto prosseguiu após essa observação. “Seo” Adão continuou a contar a história que ele havia escolhido para nos recepcionar. No dia em que o rapaz quase colocou fogo no caixão em que o avô estava enterrado há 10 anos, os fios da cerca elétrica, que passam sobre o portão, estavam arrebentados. A deixa fez com que o plano do jovem quase desse certo. Essas foram as informações que “seo” Adão havia nos passado até que chegamos próximo a um túmulo baixo, revestido de azulejo marrom.

– É esse o túmulo. O rapaz já tinha quebrado com uma picareta essa parte – disse, apontando para a cabeceira do jazido.  Eu fui pelo lado de baixo, quando cheguei a uns 3 metros dele disse ‘como você pulo aí?’ Aí ele falou: ‘pulei o portão’. ‘É invasão, você está detido. Mão na cabeça’ – disse, como alguém que impõe autoridade através da voz e da postura. O rapaz pegou a carteira e quando viu que eu chamei a chefia, chamei a polícia, pediu pra vazar. ‘Não eu trabalho há 23 anos e nunca deu problema, então você vai assumir esse processo.  Pulou pra dentro de qualquer plantão de guarda é invasão, é prisão, é cadeia’. Eu fui por lá pelo Muffato, ali por baixo – disse apontando para a parte do cemitério que fica em direção ao Super Muffato, uma das lojas de rede de supermercados. Ele reprovou dois anos na faculdade. Ele falou para os pais dele: ‘meu avô está fazendo maldição na minha vida. Eu tenho que queimar os ossos dele’. Ele trouxe gasolina, sal. Com dez minutos ele puxava o caixão e molhava com gasolina. Ele tinha ido numa mesa de magia negra, e lá falaram isso pra ele. Ele disse que o problema dele resolvia com isso, mas que tinha mais doze prejudicados – recordou enquanto interrompia as ideias algumas vezes com fatos que não faziam parte dessa história.

Até esse ponto o Pedro não havia perguntado nada; atitude que se repetiria por mais algum tempo. Ele parecia estar perdido na confusão que era o pensamento do nobre guardião. Foi nesse momento que percebemos que a ideia de vivenciar as sensações de passar uma noite no cemitério havia perdido força. O local que era assombroso se tornou comum. E “seo” Adão ganhou relevo.

Apesar de saber que o Maycon estava tentando manter algum tipo de diálogo com o guardião, eu já havia perdido o foco havia algum tempo. O sono estava no auge, e prestar atenção na conversa deles nesse momento só me faria ter mais sono e raiva. Passei a observar o cemitério. As lápides e o silêncio me chamavam a atenção. Apesar de ser um lugar taxado como macabro, a tranqüilidade que o cemitério traz a noite é fascinante. Obviamente, não podemos ficar na paranóia de pensar que estamos andando sobre pessoas em decomposição; mas isso não passava na minha cabeça nessa hora. Uma rede armada entre lápides seria um bom lugar pra tirar um cochilo. Percebendo que se não oxigenasse meu cérebro, iria dormir, voltei a conversar, mandando de bate pronto minha primeira pergunta da noite, após passar 29 minutos calado.

Fiquei surpreso ao ouvir aquela dicção que só o Pedro tem. Acho que tinha até me esquecido que ele estava compartilhando do mesmo espaço que eu, e talvez das mesmas dúvidas. Ele tinha encarado “seo” Adão e interrompido um assunto, que confesso não me lembrar.

– O senhor anda armado? - indagou o Pedro.

A resposta me fez perceber o desafio que topei enfrentar ao fazer aquela simples pergunta.

– Não. Tem, tem tom - soltou no ar.
– Oi? - o Maycon tentou entender.
– Tem tom – repetiu.  Fizemos curso no tempo do Lísias, né. Isso tudo quem deu foi ele. Tem coisa agora que tá pra vir: uniforme, calçado. Primeira essa daqui – apontou para a botina, erguendo um dos pés – essa daqui estava encostada, essa botina. Aí eu pedi lá pra eles. Aí só tinha 43 e o meu é 41. Aí falei ‘iii’, mas a minha botina, o segundo par tá furado, eu falei pro João – gagueja – que fica lá na secretaria. Aí “essa mulher”; eu pedi pra ela polir. Aí é o primeiro par da guarda. Aí fui olhar e tava melhor do que a outra, o segundo par, né. São só dois par que a gente tem. Peguei, falei: passa, olha só como representa nova, passa, passa, é essa mulher que zela tudo; passa graxa, pomada e tinta. Pois, ficou levinha. É mais levinha que a outra pra correr; ela é lisa pra andar na chuva, ela fica lisa no barro; barro não, na água. Já levei tombo de correr. Tem que andar rápido. E a outra lá eu levei na secretaria, fui calçado, mostrei pro João e disse: se chover, o tempo tá bom agora, vai entrar água. Se eu soubesse onde comprar, que tem essa proteção – bate com uma das mãos um pouco abaixo da canela. Porque se você leva um coice não machuca. Ela é fofinha – falou, sem precisar ser instigado em nenhum momento.

– O senhor se sente inseguro? - perguntou o Maycon, tentando achar algo que tivesse nexo.

– Se eu for falar, vou falar na frente do patrão. Perante juiz de direito de sentenças penais. Sou primário, sei o caminho do bem e do mal. Não precisava porte. O bom proceder do cidadão não é o porte. O comandante que está lá em Curitiba aposentado falou pra mim, desde que ele era tenente ele falava: seu pai é “xujo” na polícia, apronta, apronta, arrebenta até parente de oficial. Vai preso. Você de piá foi um piá homem, porque não apronta – encerrou com chave de ouro.

Escrevendo agora, o que ele havia dito, fiquei ainda mais perplexo com a falta de linearidade de raciocínio. O “seo” Adão era alguém a ser desvendado. Uma coisa eu já havia conseguido compreender: a vida dele não tinha sido fácil. Há 30 anos perdeu a mãe que sofria com câncer. O pai, um comerciante e sitiante de Guaraniaçu, acabou jogando tudo fora, logo no começo da doença. Veio com a família – oito filhos e a mulher - para Cascavel e nas palavras de “seo” Adão “torrou todo o dinheiro com prostituição e coisas erradas”.

A delegacia era o destino quase certo do pai de “seo” Adão. “Eu vi várias vezes os policiais fazendo uma geral nele”, relembra o guarda. As algemas faziam justiça pelas pessoas agredidas, entre outras façanhas do progenitor do nosso personagem. Esses foram os momentos mais difíceis da juventude do guarda-noturno, mas a vida ainda reservava novos desafios para Adão Raimundo. 

Hoje o guarda culpa o pai pela falta de prosperidade. A família poderia estar bem instalada com o supermercado, que chegou a ser inaugurado, mas que em pouco tempo foi transformado em nada. Nessa época, além de cuidar dos irmãos, “seo” Adão era um projeto de comerciante. Atrás do balcão, em contato com os clientes, ele aprendeu aquilo que sustenta a sua educação até os dias de hoje: “Eu tenho as quatro operações, mas na hora de escrever um cheque tenho que pedir ajuda de alguém”.

Como todo ser humano, um dia “seo” Adão se apaixonou. A donzela era uma descendente de alemão, que vivia em Guaraniaçu. Os dois se conheciam desde pequeno e com o tempo os destinos se entrelaçaram. Casado perante a lei dos homens e divina, ele tentava esquecer as besteiras do pai, e construir dali em diante uma nova vida. Tinha tudo para dar certo... Mas não deu. 

Seu Adão já trabalhava como guarda-noturno na Escola Estadual São Cristóvão. A esposa tinha envolvimento com criminosos - assassinos especificando melhor. Era o começo do fim, tanto do casamento de “seo” Adão, como da prefeita de Mundo Novo/MS, Dorcelina Folador. A política foi assassinada no dia 30 de outubro de 1999 com seis tiros de pistola. Quando descobriu o envolvimento da mulher com o crime, “seo” Adão a deixou.

Preciso abrir um parêntese para fazer uma observação. No momento em que Seu Adão revelou o envolvimento de sua ex-mulher com o assassinato, o Maycon ficou perplexo. O jovem havia saído de Eldorado/MS - cidade vizinha do município que fora palco do crime - para vir à Cascavel cursar jornalismo. Durante uma entrevista, encontra um sujeito que conhece a história, e que de certa forma é ligado ao fato, que na época balançou todo o cone-sul de Mato Grosso do Sul. Coincidência? Há quem diga que sim.
Mas, vamos voltar para a história do guardião dos mortos. O período pós-separação exigiu de “seo” Adão energias dobradas. Com dois filhos sob sua responsabilidade, ele foi pai e mãe. Como trabalhava a noite, acabava tendo que levar os filhos para dormir com ele no serviço, para que não ficassem sozinhos. “Eu era responsável por tudo isso. Levava os filhos para a escola, e tudo mais”.

Foi dessa situação que o nobre Adão recebeu um título que ele faz questão de repetir, sempre que tem oportunidade. As palavras saíram da boca da diretora do primeiro colégio em que ele trabalhou, e “seo” Adão utiliza a fala, quase que como uma filosofia de vida. “’Seo’ Adão é um pai abençoado. Trabalha só pra criar os filhos...” Durante a nossa entrevista as duas frases foram pronunciadas inúmeras vezes. Em todas as ocasiões o ato era cercado de toda uma interpretação, quase um ritual.

A vida amorosa só voltou a ficar agitada há 6 anos quando  - utilizando as palavras do próprio protagonista da história – “essa mulher” (atual esposa) cruzou o caminho dele. Resolveram se “amigar” e a união deu certo.  Atualmente vivem em uma casa alugada por R$ 180, no bairro Cataratas. Ela cuida da casa; ele você já sabe, não é mesmo? Um dia pode estar garantindo que você “descanse em paz”.

São 23 anos como guarda, sendo 20 no período da noite e destes, 4 no cemitério central.  A escuridão e o silencio são companheiros inseparáveis de trabalho. Talvez, justamente por estar sempre sozinho durante o turno de trabalho, “seo” Adão aproveitou a nossa companhia para dizer tudo o que não pode dizer em todos esses anos de profissão. 

Estávamos à mercê de um “quase” monólogo, ditado pelo velho cidadão. Acompanhamos ele por várias ruas cercadas de túmulos e mais túmulos. Era comum ele falar sobre a profissão, por exemplo, ou sobre outro assunto e tentar buscar uma referência, que não fazia sentido para a ocasião. Ele tentava encontrar pessoas quem fossem nossas conhecidas, sempre sem sucesso.

– Vocês conhecem a doutora Shirlei?
– Vocês conhecem o Tolentino?
– Vocês conhecem a Edite?
– Vocês conhecem o Léozinho, aquele loirinho da floricultura?
– Não. Não. Não. Não. - era sempre a nossa resposta.

Com o passar das horas começávamos a conhecer melhor o “pai abençoado”. Apesar das dificuldades na comunicação, Maycon e eu começamos a aprimorar nossa habilidade em filtrar e refletir sobre o que realmente “seo” Adão estava querendo dizer. Tirando as repetições constantes e as histórias que vocês já sabem, surgiram outros fatos curiosos.

Quando perguntado pela morte, “seo” Adão sempre tinha uma opinião direta, afirmando que todos têm que ser enterrados na terra: “Pois nascemos da terra e temos que voltar pra lá”. Por conta disso, sua opinião sobre as outras opções de sepultamento eram sempre negativas, mas sem nenhuma justificativa convincente:

– Eu sou contra queimar. Eu sou contra, porque eu sou católico e Deus não deixou pra queimar a gente quando morre.
– O senhor acha que é errado? – perguntou o Maycon.
– Eu acho que é errado.

Outra constatação que tive durante a entrevista foi que o guarda tinha uma séria mania de perseguição. Todos que passavam perto do cemitério queriam lhe “pegar”. Dentre essas histórias, uma se destacou. Foi quando “seo” Adão começou a nos contar quando alguns “malandros queriam acertar as contas” com ele:

– Eu tocava o pio em uma sala pro outro guarda copiar. Aí falavam: fica nessa sala e não saí fora. Aí eu ficava com a porta aberta. (Eu e o Maycon nos entreolhamos como quem queria dizer: “Lá vem bomba”)
– Quando o senhor fala pio é o alarme, o que é? –  perguntou o Maycon.
– Não. É o meu... meu pio.
– Mas o que é pio? – insistiu o Maycon.
 (“Seo” Adão ri).

Em mais uma resposta, o pai abençoado se complica, mostrando a grande dificuldade que ele tinha em explicar - como descobriríamos a seguir - algo extremamente simples:

– Assim, quando... o pio é quando você chega no portão, chega a ronda, toca a sirene da viatura, toca o pio também...
É uma sirene então?
– Não... pio que nós temos pra comunicação. Você chega chama ‘o guarda’ ou alguns chamam ‘seo Adão’ né. Sabe que é conhecido. Daí eu pego e toco o pio pra dizer que eu estou indo atender. Se você esta em perigo, pra se comunicar com o guarda do ginásio, você dá um pio tá tudo bem. Volta e meia dou um pio, eles entendem que está tudo bem.
– Depois o senhor mostra pra gente então! – o Maycon disse com ar de cansaço.

Pedro e eu só descobrimos o que era o “pio” algum tempo depois. Eu já não me lembrava do assunto, quando fomos conhecer onde o guarda se abriga. O local, conta com um sofá espaçoso, televisão, geladeira, mesa com cadeiras e pia. Provavelmente enquanto chamávamos “seo” Adão, o mesmo estivesse esparramado pelo assento almofadado com o cérebro em off. Enquanto íamos explorando o espaço, o guarda ia pedindo desculpas pelo cheiro de tinta. Foi quando ele se lembrou que tinha prometido mostrar o “pio”.

O zíper de uma bolsinha azul foi rangendo até encontrar a outra extremidade.

– Vou mostrar pra vocês o meu pio – disse, pegando na mão o objeto que ainda não havia sido revelado.
Na minha mente a mão do guardião abria em câmera lenta. A expectativa fazia com que eu visse a cena dessa forma. No entanto, quando o movimento terminou e o objeto prateado pode ser visto, senti um balde de água fria.
– Ahh! É um apito! – falei, com tom de desapontamento e surpresa.
 – Sim. Esse é o pio, olha aí! – disse o guarda, com jeito de quem estava com uma pepita de ouro na mão.
– Esse apito funciona assim – apitou, fazendo com que meus tímpanos gritassem por causa do eco. Se você apita uma vez é sinal que está tudo bem. Então, eu apito aqui e os companheiros sabem que o Adão está bem. Se eu apitar duas vezes. É perigo. Três vezes, aí pode vir que já estão em cima de mim – finalizou.
A história do pio já havia sido esclarecida. Algo tão simples, havia se tornado complexo. “Seo” Adão conseguiu criar suspense em torno de um apito que pode ser comprado por qualquer cidadão.

Apesar do Maycon e eu conseguirmos esclarecer algumas das dúvidas que obtivemos durante a entrevista, outras muitas ficarão eternamente guardadas em um túmulo do cemitério central. A que mais me incomodava era o porquê o pai abençoado se referia de um jeito tão indiferente e grosseiro a sua atual mulher, nomeando-a como “essa mulher”.

O meu colega de matéria chegou a esse ponto após uma resposta sem nexo. Nós estávamos apoiados em um túmulo quando o Pedro resolver esclarecer esse assunto. Ele realmente tinha ficado encasquetado com a história e foi assim que surgiu a pergunta.

– Por que o senhor se refere a sua atual esposa como “essa mulher”, e não como minha esposa? – alfinetou o Pedro.

Silêncio.

– Porque ela está me respeitando, né. Ela respeita, a gente deixa ela em casa e ela não se envolve com coisas erradas. E ela ajudou a cuidar dos filhos – respondeu o pai abençoado.
– Mas o senhor está casado, não está? – rebateu o Pedro.
– Não. Eu to amigado só.
– Mas está casado, só não está assinado né?
– Só que eu fiz bastante de coisa. No banco Itaú, fiz seguro. Ela tem cartão de crédito, a gente fez junto lá... – se perdeu no próprio raciocínio.

O trabalho no cemitério ficou fácil depois da instalação da cerca elétrica e do alarme. Por esse motivo, ou não, seu Adão começou a zelar por seus “vizinhos” também.

O pai abençoado que só trabalha pra criar os filhos já havia citado, entre suas diversas divagações durante a entrevista, que ele sempre ligava pra polícia quando via alguma movimentação estranha nos arredores do cemitério. Em uma das nossas caminhadas, ele começou a nos contar mais uma das suas:  

– Subi no túmulo, uma hora da manhã. Tinha um cara sondando ali e eu pensei que ele tava querendo alguma coisa comigo, né? Com uma pastinha na mão. Aí eu peguei,  trepei ali. Passou um carro preto, tipo uma Brasília. Desembarcou dois caras, uma hora da manhã. E o cara tava na moita, ali na praça, em frente ao ginásio. Eu pensei que ele tava de butuca em mim. Aí eu tinha um tijolão (entendemos que era um celular, mas, aprendemos durante a noite que poderia ser qualquer coisa),peguei e puxei. Entraram pra assaltar. Chamei a polícia. Dez minutos já vieram dois motoqueiros da Polícia Militar e mais duas viaturas; e já estavam algemados os caros. E eu desci ali onde tem aquela gradinha de pérola, ali no canto.
Alguns passos a mais e chegamos ao local aonde ocorreu o fato.

– Vem aqui pra vocês verem onde eu subo. Até funcionário daqui falou pra mim que eu sou caguete morto, por causa que eu costumo entregar pra polícia quando eu vejo que vai assaltar. Olha daqui que eu peguei o cara – disse em cima do túmulo. Agora eu tenho que olhar tudo, ficar atento. O cara tava ali ó – apontou para uma loja de informática.  

Para acompanhá-lo, subi no túmulo e fiquei ao seu lado para tentar reproduzir o fato em minha imaginação. Enquanto o Maycon estava no chão, fiquei ali ao lado de Seu Adão, que me contava a história inteira mais uma vez. Cansado de ouvi-la, comecei a reparar no túmulo em que estávamos sapateando, pulando e que era o que “seo” Adão sempre subia. A surpresa foi grande. Deparo-me com o túmulo de uma das famílias mais tradicionais de Cascavel. Chamei o Maycon:

– Olha de quem é o túmulo que a gente está em cima...

Quando reparou, meu colega caiu na gargalhada, enquanto seu Adão continuava pulando, apontando, como se estivesse revivendo a história.

Apesar de vivermos em mundos diferentes, o tempo que passamos com o “pai abençoado que só trabalhar pra criar os filhos” foi marcante. Mesmo não entendendo e concordando com quase nada do que ele falava, acreditamos que Adão tenha sido vítima da sociedade. Sem estudos e com dificuldades familiares extremas, o guardião continuou firme na luta pra sobrevivência.

Outra hipótese que discutimos é a de que ele, com muita vontade de expor o que sentia, muitas vezes (leia-se a maioria), não conseguia dizer nada de forma compreensível. Durante o tempo em que escrevemos essa matéria, começamos a tentar imaginar o que se passava no cérebro daquele homem, enquanto estava em nossa companhia. Como eram os pensamentos? O que ele pensava? Por que falava daquela forma? Essas perguntas não podem ser respondidas, mas as respostas podem ser imaginadas.

Queremos destacar também que ele se mostrou muito atencioso desde a nossa chegada. Por mais que tivemos problemas de compreensão, fomos tratados muito bem. Caminhamos por todo o cemitério, vivenciamos algumas horas em um lugar que é visto de olho torto pela sociedade, durante o período da noite, e principalmente conhecemos a figura que se destaca em meio aquele silêncio. Adão Raimundo nos proporcionou a experiência de conhecer um novo tipo de brasileiro. Sem classificação. Único. Um Adão Raimundo, pai abençoado que trabalha para criar os filhos, usa bota com proteção; ele conhece a Shirlei, o Tolentino, o Léozinho da floricultura e é casado com “essa mulher”.

Estávamos nos despedindo, andando em direção ao portão, quando “seo” Adão lançou uma pergunta como forma de despedida:

Vocês acham que se o guarda ver lá fora, alguém arrombando uma empresa, não pode entregar pra polícia?

[....]


Maycon Corazza
Pedro Sarolli

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Coisa que brinquedo não entende

A porta se abriu de uma forma como nunca havia visto antes, em um movimento vagaroso. Daqui de dentro eu aguardava as mãos delicadas do meu dono, que tocariam em mim, como em todos os dias. A luz invadia o escuro que tomava conta da minha moradia. Logo vi o rosto do garoto que sempre me escolhia para as mais impressionantes aventuras criadas pela sua mente. Foi nesse momento que percebi que algo de errado havia acontecido; que hoje não haveria brincadeira, encenação, diversão.   

Aqueles olhos que sempre brilhavam, formando uma sintonia perfeita com o sorriso, dessa vez estavam diferentes. Eu não conseguia compreender o que significava aquela água escorrendo pelo rosto dele e aquela face desmontada. Talvez por ser um brinquedo, coisas humanas não se encaixem no meu mundo, e eu fique sempre perdido quando o roteiro é quebrado. Em vez de brincadeiras às vezes me deparo com cenas de algo que eles, humanos, chamam de sentimento. 

Depois de me encarar por alguns minutos, seus pequenos dedos me envolveram com facilidade. Não senti firmeza nos movimentos. Seus olhos se perdiam como se avistassem um labirinto. Me segurando em uma das mãos, fechou a porta do local que ele chama de armário. Agora me segurava firme, olhando para mim com o rosto encharcado. Eu queria fazer perguntas. O que acontece companheiro, que hoje não me joga para cima, me dá nomes diferentes e monta histórias de repente?  Por que está tão ofegante, aflito? Cansou-se de mim?


Parece até que ele me ouviu. Começou a soluçar e formar frases. “Pai”. “Mãe”. “Acabou”. “O que vai ser agora?”.  Essas palavras saíram sem nexo, soltas no ar, como se o que ele queria dizer não tivesse sentido nem mesmo a ele. Então, resolveu se sentar, desabando no chão coberto por um tapete, que em dias normais se transformava em mar, estrada, chão da lua. Ele me apoiou em cima das pernas, me acariciou e deu início a um monólogo interrompido com freqüência por suspiros, soluços e mais daquela água que brotava dos seus olhos.

- O que será de mim agora? Acabou tudo. Meus pais se separaram, não serão os mesmos. Eu não vou ser o mesmo. Por que isso tinha que acontecer? Me diz! Você não deve entender, nem imaginar.
Realmente não sabia do que se tratava, estava angustiado, queria resolver os problemas dele, ser o herói da brincadeira, mas só podia ouvir. E de repente o silêncio tomou conta do ambiente. Ele me segurou com firmeza, colocou-me perto do seu rosto e eu sentia o carinho daquela atitude. Ficou assim por alguns minutos, paralisado. Nesse momento quis ser humano, poder entender o que acontecia; ajudá-lo, retribuir o carinho.

“Filho”, a voz grave se fez ouvir. Conhecia aquele homem que tinha mania de chamar meu dono de filho, mesmo sabendo que o nome dele era Maycon.  O rosto do gigante estava pálido e aquela água brotava dos olhos dele também. Uma das mãos estava ocupada por um objeto com alça. O chamado fez com que eu fosse colocado no chão e meu dono se levantasse e corresse em direção ao homem de grande altura. De onde eu estava não consegui ouvir o que eles falavam. 

É, parece que foi ontem que aquele senhor esteve aqui pela última vez. Desde então nunca mais o vi por aqui. Vejo apenas aquela senhora que meu dono chama de mãe. Nunca mais vi o Maycon com os dois juntos, conversando, sorrindo. Comigo ele também mudou. Seu mundo mudou. E sempre ouço meu dono culpando uma tal separação. Coisa que brinquedo não consegue entender. 

Maycon Corazza